Presença maior de negros na mídia tem mais a ver com consumo do que representatividade, diz Nei Lopes.
Paulo Cézar Caju, Carolina de Jesus, Muniz Sodré, Ingrid Silva e Seu Jorge são algumas das cem personalidades negras perfiladas no novo livro do escritor, compositor e estudioso de culturas africanas Nei Lopes, que diz, na introdução, que quis "revelar a importância de brasileiros e brasileiras notáveis, cujas realizações são em geral ignoradas pela sociedade que ajudaram ou ajudam a construir" pela circunstância "de carregarem em sua identidade — declarada, evidente ou suposta — o selo étnico-racial 'afro'.
Em entrevista, Lopes conta que Afro-Brasil Reluzente: 100 personalidades notáveis do século XX (Nova Fronteira, 2019), que será publicado no mês que vem, traz um personagem "polêmico": Pelé, "que as pessoas lembram sempre que nunca se pronunciou sobre o racismo brasileiro".
Lopes, entretanto, diz que Pelé é de uma geração anterior em que o assunto "racismo" era tabu em famílias negras.
"Até eu chegar à universidade, esse assunto era proibido na minha casa. Diziam 'tem mais é que estudar, não tem que se meter nisso, isso não adianta'. Era aquela história, 'isso é muito triste, mas já passou, não temos que pensar nisso'. A cura pela alienação."
África pode ajudar Brasil a lidar com racismo', diz embaixadora que atua há 3 décadas no continente Descendentes precisam saber que história da África é tão bonita quanto a da Grécia.
Hoje, os tempos são outros. Para Lopes, que é autor de romances, ensaios e dicionários/enciclopédias como Dicionário da Antiguidade Africana (Civilização Brasileira, 2011), Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana (Selo Negro, 4ª.ed., 2011) e Dicionário da História Social do Samba, este escrito em parceria com Luiz Antônio Simas e vencedor do Prêmio Jabuti de Teoria/Crítica Literária, Dicionários e Gramáticas, "o mercado está descobrindo o potencial do povo negro" e a presença maior na mídia de artistas e intelectuais negros é "positiva, um passo para maiores conquistas, como o poder político", mesmo que isso tenha "mais a ver com consumo do que com representatividade".
Filho de um operário que nasceu três meses antes da abolição, em 1888, Nei Lopes diz que "Consciência Negra", a data celebrada nesta quarta-feira, "tem que ser o ano inteiro, o dia todo".
Veja abaixo os principais trechos da entrevista:
Como foi concebido o livro e como selecionou as pessoas que entrariam?
Nei Lopes - O livro foi um convite da editora, que eu aceitei com prazer, apesar de ter recebido um prazo apertado. Delimitei a pesquisa a pessoas nascidas no século 20, senão ficaria uma infinidade de nomes. O objetivo é dar visibilidade àqueles que fizeram ou fazem obras importantes.... Aqueles que têm história pessoal com a qual podemos trabalhar, que mostrem superação.
Alguns foram escolhidos por sua originalidade. O jogador de futebol Paulo Cézar Caju, por exemplo, sempre combateu o racismo à sua moda, com muita ousadia, e foi amaldiçoado em sua carreira por isso. Hoje superou as barreiras e tem uma coluna semanal (de jornal) onde fala coisas da maior pertinência sobre os problemas do futebol.
Outra trajetória que me comove é a de Seu Jorge. Ele viveu por três anos na rua. Mas o destino o levou por um caminho positivo. Mais um exemplo foi o Pretinho da Serrinha, um rapaz criado na favela, com pai e mãe com problemas de marginalidade intensos e que foi resgatado por um projeto de ressocialização através da música. Hoje é um baluarte, uma das pessoas mais reconhecidas nos estúdios de gravação. Fui buscando coisas desse tipo em todos os segmentos.
Sabia menos sobre as pessoas mais jovens, como a Ingrid Silva, que é bailarina, aluna de um projeto social na comunidade Mangueira, e hoje está no balé do Harlem. Outro dia vi uma declaração dela sobre a conjuntura política atual em que dizia que se situação na época dela estivesse como está hoje não teria realizado seu sonho.
Tem outros ícones como Muniz Sodré, um dos maiores teóricos da comunicação do Brasil. Joel Rufino dos Santos, que era da minha geração.
Tem também uma figura polêmica, o Pelé, que as pessoas lembram sempre que nunca se pronunciou sobre o racismo brasileiro. Comecei a comparar: Pelé é da minha geração, nasci em 1942 e ele, em 1940.
Meus pais ainda eram próximos da escravidão. Meu pai em nasceu em 1888, minha mãe, em 1900. Era aquela história, "isso é muito triste, mas já passou, não temos que pensar nisso". A cura pela alienação.
Na faculdade de direito eu participava do movimento estudantil com participação de esquerda e também era negada essa consciência. Diziam "isso aí é um desvio ideológico, tudo vai se resolver quando o socialismo vencer", aquelas ideias que ocorriam naquela época.
Como e quando surgiu sua consciência racial?
Lopes - Na adolescência, já tinha um bichinho andando na cabeça por causa da questão da representatividade. Eu não via numa revista, num jornal, negros em condições invejáveis, só no ambiente radiofônico, mas aí, percebi que aqueles negros não tinham nome, eram apelidos — Jamelão, Chocolate, Noite Ilustrada. Isso começou a mexer comigo.
Meu primeiro casamento foi com uma mulher negra de classe social diferente da minha — ela era classe média, eu era filho de operário. Os pais dela tinham essa consciência, isso na década de 1960, e foi aí que comecei a despertar.
Na casa deles eu tinha acesso a revistas norte-americanas. Comecei a ver a diferença. Havia uma imprensa negra forte nos Estados Unidos — revistas como Ebony. Mostravam os artistas do jazz, do cinema, mas também os empreendedores. As revistas tinham galerias de jovens promissores. Isso foi fazendo a nossa cabeça.
Depois veio a literatura. Tive acesso a antologias de poetas que escreviam em francês, inglês, espanhol. Um poeta que me marcou profundamente nesse momento foi o cubano Nicolás Guillén (1902-1989), que é um poeta da Revolução Cubana. Ele aliou suas convicções socialistas a questões relativas à comunidade negra. Fui muito tocado por isso e tenho ele aqui na estante num lugar de honra.
Outra fonte importante foi o contato que tive na escola, durante a adolescência, com meninos que moravam nas favelas e participavam de escolas de samba.
Eu já tinha gosto pelo samba, minha casa era muito musical. Mas a escola de samba era algo distante. A gente, que não morava na favela, não podia estar lá. Minha mãe dizia "eles lá, nós aqui". "Eles" eram os moradores da favela. Nós éramos pobres, mas não morávamos na favela. Nessa convivência, tinha um, cuja família era ligada ao Salgueiro, e eu me aproximei e tive uma vida lá.
Como você vem pensando a sua obra sobre cultura afro-brasileira?
Lopes - Tenho feito uma tentativa de nominalizar os casos. Tenho uma enciclopédia brasileira da diáspora africana publicada em 2004. É um trabalho que tem um montão de defeitos editoriais, mas é a base do trabalho que estou fazendo agora. Ela rendeu também um dicionário escolar afro-brasileiro. Todos os que puderem fazer isso merecem todo o apoio.
É preciso que se saiba que há uma tradição religiosa, de conhecimento, de pensamento, de pessoas realizadoras. O Brasil já teve pelo menos dois presidentes afrodescendentes, (mas não se falava disso) afirmar-se como afrodescendente eram um demérito até meados do século 20. As pessoas escondiam sua origem. E as políticas públicas em vigência na Primeira República, até 1930, mais ou menos, incentivaram esse ocultamento.
Como funcionava na prática esse ocultamento?
Lopes - O Brasil teve uma política pública de embranquecimento, que fica evidente com o favorecimento da imigração europeia. Isso era sustentado por cientistas, que preconizavam uma hierarquia de raças. Acreditavam que a população se branquearia e que isso era bom. A própria população achava isso, que seria um país mais parecido com os outros, mais "adiantados".
As pessoas não se autodeclaravam negras porque era demérito. E havia todo um mecanismo de fotografias, da cor da pele ser retocada.
Elas eram retratadas nas publicações como "nascidas em lar humilde", um "mestiço genial". Eram pessoas geniais, então não podiam ser descendentes de africanos. Era assim que a banda tocava.
Houve a proliferação de ideias falsamente científicas, a eugenia, da construção de uma raça mais forte. Isso tudo foi sendo derrubado. Sabemos que teve outros objetivos, era para atender a interesses específicos.
O livro tem uma maioria de homens.
Lopes - Isso é quase natural porque a emergência da figura feminina é muito recente. As mulheres que se notabilizaram até as décadas de 1930, por aí, não apareceram — suas histórias só foram resgatadas bem depois. Esse desvendamento só começa com o movimento negro na década de 1970. Quem sabe se num volume dois tenhamos mais equilíbrio.
Esse ocultamento segue no ensino escolar? Como vê o ensino de história africana e afro-brasileira nas escolas?
Lopes - Não sou professor, mas minha ideia é que deveríamos começar a contar a história da África antes do momento da chegada dos europeus, do encontro com a era dos grandes descobrimentos, a partir do século 15.
A África tinha um peso de realizações que não era menor do que na Europa. Veja o Egito. Na parte oriental do Egito floresceu a Núbia, que rivalizou com o Egito faraônico, e emergiu uma dinastia de faraós indubitavelmente pretos. Só depois disso que se chega à escravidão comercial.
E a imprensa? Você disse que quando era garoto te chamava a atenção a maneira como a imprensa retratava a população negra. Você acha que isso mudou? Como vê a cobertura sobre raça na imprensa?
Lopes - A grande movimentação que artistas e intelectuais negros vêm tendo ultimamente vem se refletindo na mídia. Mas isso, na minha avaliação, tem mais a ver com consumo do que com representatividade. O mercado está descobrindo o potencial do povo negro. E isso é positivo, pois é um passo para maiores conquistas, como o poder político, sobretudo.
A ideia do novembrismo — falar da questão racial só, ou muito mais, no mês de novembro — é muito criticada. Qual a sua opinião sobre isso?
Lopes - É sempre uma questão de consumo, de aproveitar as datas. Da mesma forma que samba no Carnaval; que dar presente no Natal; de churrascaria no Dia das Mães. Consciência Negra tem que ser o ano inteiro, o dia todo.
Como passa o Dia da Consciência Negra?
Lopes - Passo trabalhando, esclarecendo.
Mudando o assunto para a música, pode explicar o conceito de 'desafricanização' do samba?
Lopes - O samba tem o seu DNA na África, foi gerado na Bahia e ganhou a forma urbana no Rio. Mas com essa "urbanização", foi perdendo muitos de seus componentes africanos até ganhar a forma "bossa nova", que ganhou o mundo. E só ganhou porque perdeu a polirritmia que o caracterizava e que o mercado internacional achou que dificultava a execução (interpretação dos músicos) e a compreensão pelo público. Para mim, esse fenômeno foi de "desafricanização", sim.
Como vê a música popular e o samba hoje?
Lopes - O mercado exige tudo mais simples, mais fácil e mais igual. Inclusive isso hoje é uma exigência das novas formas de distribuição de conteúdos musicais, no ambiente virtual. Se a música não for "facilzinha", o eventual consumidor sai do canal em busca de outra.
Quais são seus próximos projetos?
Lopes - Tenho mais um romance encaminhado. E, como sempre, com protagonistas negros, pois este é o meu foco. Foi assim que meu O Preto que Falava Iídiche foi incluído entre os 5 brasileiros finalistas do Prêmio Oceanos, a ser decidido em 5 de dezembro. E certamente ainda vão aparecer muitas coisas interessante para eu realizar.